segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Mais uma história de resistência


No dia que aconteceu tudo de pior no Pinheirinho, em São José dos Campos (ocupação em terreno ocioso de um pilantra imbecil que tem costas-quentes num governo louco por poder e que adora bater – literalmente - em quem atrapalha seu caminho), eu estava em Embu das Artes, de volta por um dia. Fui ajudar uma amiga numa pesquisa envolvendo as casas do pessoal reassentado em três projetos habitacionais de lá (no qual tive prazer de conhecer tanto a obra quanto os moradores, na minha passagem de dois nos por lá).

Cheguei em casa à meia-noite com um misto de alegria e de saudade. Feliz demais com o dia. Mas dou uma zapeada pelo facebook e leio milhares de mensagens sobre a violência covarde da PM em São José dos Campos. O que me fez escrever a história de um morador do Valo Verde, um dos locais de intervenção urbanística e habitacional que eu mais frequentava em Embu (e o que eu mais gostava - ainda gosto até hoje).

O Valo Verde era um dos lugares mais perigosos de Embu na década de 70 até o fim dos anos 90 [Embu das Artes era sinônimo de desova de corpos, ironicamente conhecida também pela feirinha de artes]. O Valo era uma favela sem as mínimas condições de habitabilidade. Barraco em cima de barraco, com o agravante de estarem próximos a um córrego que era o esgoto a céu aberto.

[Não conheci o bairro naquela época, mas quando ajudei na mudança do lugar onde trabalhei, achei uma caixa cheia de fotos e notícias do lugar, as quais fiquei horas olhando enquanto deixava a chefe na mão durante a mudança. E é essa a impressão que tenho de lá, naquele tempo].

Em cima da favela, na parte mais alta, a CDHU era - e ainda é - dona de um grande terreno, e queria fazer mais prédios por lá. Para fazer a obra, era necessário “limpar” o lugar para construir um muro de arrimo gigantesco. O “limpar” era retirar o pessoal da favela.

Um dia os moradores são surpreendidos por uma cavalaria da polícia militar e cerca de 20 caminhões-baú, para remover toda aquela gente de lá. Uma baita de uma confusão se instaurou no lugar, com os policiais querendo tirar o povo, e um vereador novato fazendo a negociação com o chefe da operação. Alguns moradores se exaltaram e brigaram com a polícia, mas não foram bem sucedidos. Ao fim, negociaram e deixaram a população lá. Não haveria reintegração de posse (nem deveria, o terreno que queriam limpar era – e ainda é – municipal).

O governo estadual teve a derrota. Governo, na época, de Mário Covas.

Mas isso não era sinal de calma. Por muitos dias a polícia aparecia insistentemente na área, causando medo na população, mesmo sem fazer nada fisicamente. Alguns dias depois, alguém do governo municipal apareceu por lá e pediu pra montar uma comissão urgente de três representantes da favela, para irem a uma reunião na CDHU exporem seu ponto de vista e pressionarem por paz. Um dos integrantes era o morador que me contou essa história. Ele me diz que foram à CDHU (que na época era na avenida Nove de Julho) e lá soube que o dirigente com quem conversaram tinha dito que já havia feito acordo com o município e não teria nenhuma ação por conta deles. A favela estava salva.

O fato é que a CDHU construiu mais prédios na área, não fez remoções indevidas, o município passou a investir um pouco mais no local e hoje, me dizem, o Valo Verde é um paraíso perto do que era.

Valo Verde - em 2003 e em 2007

Coincidentemente, soube dessa história no mesmo dia da covardia em São José dos Campos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O centro de SP

Morei 16 anos no Jardim Ângela (tido como o segundo bairro mais perigoso de SP, na época em que estava lá), depois fiquei 7 anos em Campinas (no centrinho do bairro classe média-alta perto da UNICAMP, lugar de estupros e assaltos constantes), voltei pra SP, fiquei mais 6 meses no Ângela, e logo me mudei pro centro de SP. Moro aqui há dois anos e meio.

No começo, a vida era ótima. Ônibus pra tudo quanto é lado, metrô do lado de casa, tudo é perto e os bares são baratos. Mas logo reparei que a ladeira da Memória era a casa de inúmeras crianças em situação de rua. A frente do meu prédio amanhecia com vários saquinhos com resquícios de cola de sapateiro. Quase toda noite tinha agentes de limpeza da prefeitura enxotando as crianças para poderem lavar a ladeira. Elas logo voltavam, arrumavam seus colchões e iam pedir dinheiro no bar mais próximo.

No primeiro ano de vivência no centro fui assaltada por uma dessas crianças. Eu estava na companhia de uma amiga, e tanto a criança tava louca de cola, quanto a gente tava doida de cerveja. A criança não quis meu celular (rejeitou na cara dura), e pudemos ir embora. A criança tinha 10 anos. Ao tomar o café da manhã no bar perto da casa dela, ela foi à nossa mesa pedir dinheiro. Minha amiga quis tirar foto com nosso assaltante, que admitiu, com palavras tortas, que foi ele mesmo. Nunca vi uma criança tão feliz por aparecer numa foto. Pagamos um lanche pra ele.

Uns 3 meses depois, as crianças tinham desaparecido. Logo imaginei grupos de extermínio. Mas, um ano depois, estavam de volta, para sumirem de vez meses depois.

Nesse segundo ano no centro, tive a idéia de ir andando à União de Mulheres de SP, no Bixiga. Dez minutos de caminhada, pertinho. Era domingo. No caminho, pela avenida Nove de Julho, um grupo de crianças doidas de cola me abordaram. Eu estava com um refrigerante, que deixei com elas. Eram mais de 10. Uma delas abriu minha mochila, que estava nas minhas costas, e prontamente foi repreendida pela criança mais velha, que me pediu desculpas. Não tive reação alguma.

Eu costumo chegar tarde em casa. Mas, em dois anos, tive apenas esses dois incidentes. Com crianças, que na abstinência, faziam qualquer coisa.

Hoje eu vi como vai ser o centro a partir de agora, com a política de dor e desespero. Se crianças nos deixam sem ação, com jovens e adultos a situação não melhora. É difícil falar de segurança pública com um governo desse. Que prioriza a truculência à ajuda. Que prefere mobilizar policiais para bater em estudantes e deixar o centro (e outras regiões tão perigosas quanto) desfalcado. Que prefere incitar o ódio da população aos que mais precisam dela. Que faz de tudo para que a população clame por gentrificação.

Estou de saco cheio disso tudo. Mas, pior ainda, estou de saco cheio de não saber como ajudar, sem depender do governo.